O dia-a-dia de um Changeling

Por Raquel Serruya Elmescany

Coincidentemente, hahaha, este conto trata da minha personagem no Projeto Belém das Trevas. Pra quem não sabe, o Projeto Belém das Trevas é um projeto de Live Action/Crossover, desenvolvido por alguns integrantes da RPG Pará e outros colaboradores, utilizando os cenários do Novo Mundo das Trevas, ambientados na cidade de Belém, capital do Pará. O projeto é composto de dez mesas, incluindo mesas de Vampiro, Lobisomens, Magos, Geists, Mortais, Imortais e… Changelings.

Este primeiro conto é a respeito da personagem que interpreto, como jogadora do projeto, e trata-se de uma introdução ao cenário Changeling, como utilizado no Belém das Trevas. A idéia é passar o dia-a-dia da personagem, e as dificuldades de ser um Changeling: de fato, você está “perdido”. O próximo conto será sobre Fiasco (tema do próximo evento). E vamos ao conto!

Alice estava saindo de sua nova residência, em frente ao Museu Emílio Goeldi. Tratava-se de um apartamento compartilhado com outros changelings da Corte da Chuva, a qual fazia parte. Sua mentora, Evelyn, era a dona do lugar, e Alice se sentia ligeiramente incomodada por dever favores a ela. Mas, na condição em que estava, sem documentos ou quaisquer identificações válidas, sem emprego e sequer um lugar pra morar, a oferta de Evelyn fora extremamente generosa. Alice devia muito a ela, e por mais que isso fosse incômodo, não tinha outra alternativa.


 Pegou sua bolsa, contendo sua identidade falsa: Alice Gold. Certo, isso não era muito criativo, mas tinha sua foto 3×4 e sua assinatura. De acordo com o documento, ela era filha de John Gold e Melissa de Araújo Gold. Constava, no documento, a origem estadunidense, apesar de Alice ser, originalmente, de descendência suíça, nascida na Alemanha. Ela achava que Evelyn mantera sua identidade como estrangeira para não levantar muitas suspeitas quanto ao não conhecimento de muitas coisas da sociedade local. Afinal, se passara um século desde que Alice esteve em Belém, antes de ser raptada e se tornar uma changeling: muito mudou, na cidade, nas pessoas e nos comportamentos.

As roupas, por exemplo. Que os espartilhos eram moda no século XIX, Alice sabia, mas… decotes e tecidos coloridos? Calças? Ela colocava seu vestido, enquanto imaginava se deveria aderir á moda atual, usando calça comprida. Talvez uma saia. A idéia parecia um pouco forçada. Na verdade, Alice não sabia que tipo de roupa seria mais adequada para ela. Parecia que nada do mundo atual era adequado. Nada parecia real. Às vezes, Alice não sabia qual era o sonho ou a realidade: o cárcere ou o mundo em que ela estava vivendo…

Tinha chegado ao térreo, e saído do prédio em seguida. A Av. Magalhães Barata estava um caos, engarrafada, cheia de carros, barulhos de buzinas e ônibus freiando bruscamente nos sinais. Alice mesclou-se na multidão, rumando ao museu. Isso não era muito difícil. Ninguém olhava para ela. Alguns olhavam por um fugaz instante, e depois desviavam o olhar para alguma coisa mais interessante. Ela era ligeiramente curvada, com longos cabelos compridos, ou pelo menos assim ela parecia para os mortais. Nada de muito chamativo. Uma pessoa tímida, sem nada de especial. Isso era, ao mesmo tempo, bom e ruim.

Surpreendeu-se por um momento, ao vislumbrar uma criança olhando para ela. Parecia curiosa a seu respeito. Alice retribuiu a curiosidade, mas a mãe logo puxou a menina para longe. Ela lembrava Alice dela própria, quando criança, obrigada a andar com a mãe puxando-a para todos os lados, dizendo-lhe o que era certo ou errado. Sentiu falta dessa proteção, por um instante. Sentiu falta da inocência infantil, da falta de preocupações com a própria vida. Mas foi um descuido despreocupado, por outro lado, que a levou a perder toda a sua família.

Lembrou-se daquela noite tortuosa, e imaginou o desespero de seus pais. Ou será que nem sentiram sua falta? Chegara ao museu, cumprimentara algumas pessoas. Observou Evelyn em sua sala com um canto do olho. Passou direto e rumou para sua mesa. As lembranças de sua infância ainda a torturavam, mas ela sequer imaginava o que tinha acontecido depois de ter sido raptada.

Ao chegar em sua mesa, ela se deparou com um livro que não estava lá no dia anterior. Era um livro que contava a história das famílias nobres de Belém. Havia uma folha ligeiramente molhada, marcando uma das páginas. Alice abriu o livro na página marcada, sentando-se com ligeira apreensão. Em seguida, leu:

“A família Goeldi foi uma das mais influentes da região desde sua chegada, no ano de 1894, dada a importância de seu patrono, Émil August Goeldi, mais conhecido como Emílio Goeldi na sociedade paraense. Grande naturalista, Goeldi trouxe diversas descobertas científicas importantes para a capital, como pesquisas sobre novas espécies de plantas amazônicas e taxonomia dos animais locais.
Pai de cinco filhos, na época, cuidava de suas crianças juntamente com sua zelosa esposa, Adelina Meyer Goeldi. Em 1895, porém, a família foi vítima de um grande infortúnio. Sua filha mais velha, Alice Goeldi, desapareceu em uma noite de chuva, e nunca mais foi encontrada. A família, inconformada com a situação, relutou em fazer um enterro simbólico, mas foi obrigada a fazê-lo, depois de 45 dias sem pistas sobre a pobre menina.

Apesar do museu ter sido nomeado em homenagem á Emílio em 1902, a família ainda se encontrava muito abalada pelo desaparecimento de sua primogênita. Mudaram-se de volta para a Suíça, dada doença grave de Emílio. Em 1917, ele falecera, com apenas 58 anos. Porém, sua passagem por Belém será eternamente marcada por suas descobertas, dignas de vivas e honrarias. Fica então, como nosso agradecimento, o nome Museu Emílio Goeldi, até hoje, para que ele seja lembrado como este digno homem que Belém teve o prazer de receber.”

Alice parou a leitura, sem fôlego. Mal tinha percebido que tinha parado de respirar durante a leitura. A folha molhada: símbolo da Corte da Chuva. Evelyn deixara o livro em sua mesa, propositalmente. Ela não sabia que seu pai tinha morrido doente. E que tinham se mudado para a Europa antes disso. E sua mãe, o que fez após isso? Como se sentiu? Quanto anos mais viveu? E seus irmãos? O livro não mencionava mais nada a respeito de sua família, continuava os parágrafos tratando de outras famílias nobres de Belém do fim do século XIX.

O sentimento de dúvida, desconforto e curiosidade eram latentes. Uma lágrima escorria em sua face esquerda, contra a vontade de Alice. Ela se sentia, de fato, perdida. Mas precisava encontrar uma maneira de continuar vivendo. Procurar mais informações sobre a sua família parecia um plano. Mas ela não sabia por onde começar.

Ela fechou o livro com um baque surdo. Passou no escritório de Evelyn, deixou o livro em sua mesa, e sem falar uma palavra, virou-se para ir embora.

Evelyn poderia jurar ter ouvido, muito distante, um murmúrio que lembrava algo como um forçado “obrigado”. Mas não havia mais ninguém na sala. Ela sorriu e guardou o livro na estante, e voltou ao trabalho.

“Ainda falta tanto pra você, Alice…” – murmurou Evelyn, enquanto observava seus escritos e pensava no quanto sofrimento um changeling tem que armazenar até finalmente decidir o que fazer com ele.


Desenhos de Pedro Neto

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